Manifesto

Liberdades esquecidas: uma reflexão a partir da obra Fernão Capelo Gaivota

Em tempos de pandemia, em que discussões acerca das liberdades ganharam as primeiras páginas dos jornais em diversos países, o tema que antes era abordado em seu caráter stricto sensu, passou a contemplar novas pautas de discussão, especialmente no que se refere ao âmbito de sua extensão. Liberdade, consoante a Constituição Federal e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, traduz a possibilidade, respeitando os limites legais, de ir e vir, de decidir sobre o próprio corpo, de pensar e de empreender. Ter liberdade é poder relacionar-se – amar e ser amado –, expressar-se, manifestar crença ou religião, exercer livremente direitos, trabalhar, bem como reunir-se de forma pacífica. Portanto, compreender o sentido do termo liberdade, para FernãoCapelo Gaivota, é “ir aonde quisermos e ser o que somos”[1].

Historicamente, o Brasil, assim como outros países da América Latina, sofreu e ainda sofre com a restrição de alguns direitos individuais, especialmente a liberdade em seu sentido lato sensu.

Entre os anos de 1937 a 1945 viveu-se, no Brasil, sob o governo de Getúlio Vargas, ou seja, sob o chamado Estado Novo. Esse período, também conhecido por “Era Vargas[2]”, foi marcado pela centralização administrativa e financeira, pela unificação política, pela eliminação da liberdade de imprensa, juntamente com a eliminação do sufrágio universal, pelo fechamento dos parlamentos, inclusive com severas limitações das prerrogativas econômicas e tributárias, assim como pela abolição dos símbolos regionalistas – com incineração das bandeiras estaduais – dentre outras medidas implementadas com a finalidade de unificar o país.

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Frente às autoritárias medidas implementadas, “ali, de pé na areia, começou a pensar se lá havia uma gaivota que poderia estar lutando para libertar-se de seus limites, para ver o significado do voo além de uma maneira de se deslocare de pegar um pedaço de pão atirado de um barco”[3]. Em 1946 houve novas eleições.

Passado o período chamado de República Populista…

Em 1964 teve início o regime militar. A partir disso, ocorreram eleições regulares apenas para a Câmara dos Deputados Federais, Assembleias estaduais e Câmara de vereadores. Todavia, as eleições presidenciais, para governador e prefeito de determinadas cidades se tornaram indiretas. No que tange o sistema multipartidário, este passou a ser bipartidário em 1965, e pluripartidário, com 6 partidos, em 1980. Por fim, dentre outras medidas implementadas, houve a urbanização do país, industrialização da economia, e a severa atuação dos órgãos de censura da mídia, da oposição e dos “ditos” subversivos.

“É certo para uma gaivota voar, que liberdade é a própria natureza de seu ser, que tudo que dificulte essa liberdade deve ser posto de lado, seja ritual,superstição ou limitação sob qualquer forma”[4]. Em 1985 teve fim o regime militar.

Como sístole e diástole, em 2020, com o início da pandemia do COVID-19 e com o sistema de cogestão determinado pelo Supremo Tribunal Federal, deparou-se com o retorno de medidas autoritárias há muito tempo esquecidas, as quais cominaram na limitação de liberdades. Decretos[5] estaduais e municipais determinaram a abertura tão somente de comércios “essenciais” (para o conceito daqueles que proibiram), o toque de recolher, a venda somente de produtos de primeira necessidade, o fechamento das escolas, a proibição de frequentar praças, parques, praias e igrejas, dentre outras medidas restritivas de liberdade instituídas.

Diante disso, tem-se que apesar de a Constituição Federal de 1988 assegurar inúmeras liberdades e garantias, no Brasil observa-se o movimento que, como o bando de Fernão Capelo Gaivota, plana entre avanços e retrocessos.

“Bem, esse tipo de voo sempre existiu, à espera de ser aprendido por todos os que quisessem descobri-lo. Não tem nada a ver com tempo. Estamos à frenteda moda, talvez. À frente da maneira como voa a maioria das gaivotas[6]”. A liberdade é direito intrínseco aos seres, e quiçá Fernão Capelo Gaivota esteja certo e o enxergar esta garantia não tenha nada a ver com o tempo.

Este texto é dedicado aos gaúchos… para que jamais esqueçam daqueles que, durante a pandemia, tiraram do povo aquilo que há de mais precioso… a liberdade.

 

Texto de: Maria Eduarda Trevisan Kroeff
Advogada e produtora rural, formada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, com período de estudo na Universidade Loyola Andalucía, Mestra em Direito Privadopela Universidade Mediterrânea diReggioCalabria, pós-graduada em Gestão e Direito do Agronegócio e pós-graduanda em Direito dos Negócios pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisadora de Direito Agrário da UniversidadSiglo 21 (Aregntina), autora do capítulo “Uma tentativa de mapeamento das estruturas densificadoras da boa-fé in executivis na Argentina, Chile e Uruguai” na 3a edição do livro “Boa-fé e sua aplicação no Direito brasileiro”, pela Editora Fórum.

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